O rato
Começou na busca de suprir uma carência afetiva bastante complexa. E em uma tarde de sábado eu o comprei – o Rato. Inicialmente, não tínhamos nenhuma afinidade, mas com o passar do tempo fomos nos acostumando e eu fui me apaixonando. Se chorava, se sorria, se gozava, se falava, se cantava, em todos os momentos, lá estava ele.
Àquela altura, algumas coisas haviam mudado no mundo e uma delas tinha sido a domesticação dos ratos. Há algumas décadas muitas pessoas possuíam um, dois e até três, mas naquele início de século XXI, ter um rato era muito demodê. A ciência já tinha provado por A + B que ele era maléfico para a saúde dos indivíduos que o tinham. As pessoas foram, desta forma, pouco a pouco deixando os ratos e eu, na contramão da vida, era uma das poucas criaturas que me relacionava com um deles. Ele era feio, cinzento, tinha rabo enoooorme, mas era meu e tão somente meu.
Meus pais fingiam que não sabiam que eu mantinha um rato dentro de casa, e enquanto eles lá estavam eu o escondia, e quando eles estavam lá, eu o escondia, bem escondidinho dentro do meu armário, em uma caixa de um eletroeletrônico qualquer. E ele ficava lá, bem quietinho, até o nosso próximo encontro.
A minha irmã, enfermeira, ahh, esta sabia, e para ela foi um choque que eu, uma menina tão correta, caçula e meiga pudesse ter um rato. Um rato! E ela dizia:
- Por que faz isso? Olha, eu vou contar para mamãe!
Mas com um jeito sedutor, que mais tarde eu descobri que tinha, eu a convencia de que em breve iria me desfazer dele, e ela, ficava aliviada. O “em breve”, no entanto, durou alguns longos tempos. A carência excessiva que eu nutria, no entanto, foi com o curador de todas as coisas – o tempo - se atenuando, mas mesmo assim eu ainda necessitava tê-lo, porque ele era a minha companhia. Quando alguns amigos diziam coisas horríveis sobre o meu animalzinho, eu abria um sorriso amarelo e silenciava.
- Se liberta! – Diziam alguns.
- Você é tão bonito! Como pode ter um rato tão feio? Falavam outros.
Eu sorria, entretanto, pegava meu rato e pensava “Vocês são tão perfeitos, não é mesmo?” e seguia feliz, porque ele estava ao meu lado. E eu vivia assim, como que imune a todas as pragas que a Medicina, as pessoas, os amigos me desejavam em minha tão alegre convivência com o rato.
Só que nada é eterno. E um dia, após um diagnóstico doloroso, eu percebi que era chegada a minha hora. Chegou o tempo em que era preciso me despedir daquela paixão.
E eu gostaria que soubessem de algo: muitas coisas da minha vida eu esqueci, ou o tempo tratou de apagar, mas aquela quinta-feira eu nunca esqueci.
Eu estava no banheiro, peguei-o em minhas mãos, abracei-o com tanta plenitude que passamos instantes sendo apenas um. Larguei-o, não repentinamente. Mas fui lentamente descendo até colocá-lo no chão. Fiquei ali minutos a contemplá-lo, a lembrar as nossas lembranças, chorar as nossas dores, sorrir as nossas alegrias. Olhávamo-nos tão intensamente, eu a ele e ele a mim, até que não pude mais sustentar-me de joelhos e caí em posição de luto. Fiquei ali, acredito que por mais umas três horas, chorando copiosamente. Em um primeiro momento, as minhas lágrimas eram salgadas, mas depois de um tempo eram tão doloridas que a sensação era de facas perfurando o meu rosto. Ele, no entanto, não entendia, era um rato.
Eu, então, o peguei com toda força, o joguei na privada e dei descarga. Ele morreu.
No outro dia, quando cheguei ao trabalho, as pessoas me perguntaram sobre ele e eu contei a elas – emocionada - a história, mas a minha vontade era de dizer:
- Por que me perguntam de algo que tanto odiavam?
Mas eu não disse absolutamente nada e eles seguiram... andando. E eu também segui... sangrando, sangrando saudades do meu rato.